Por Cristiano Mello de Oliveira
O presente artigo propõe averiguar como os procedimentos textuais utilizados pelo escritor modernista Mário de Andrade para compor o romance-diário O Turista Aprendiz se aproxima de uma linguagem próxima do povo. Na dissertação de mestrado, defendida em dezembro de 2011, tivemos a oportunidade de averiguarmos como a chave de leitura proposta pode ser operada como funcionamento interpretativo auxiliar do texto. Defendemos que Mário de Andrade, ao se aproximar do povo, gerou inúmeras contribuições sociais aos leitores dos seus textos. É sabido que durante suas investigações no Norte e Nordeste brasileiros, as quais ele teve a chance de percorrer, tiveram muito mais um papel cultural do que preocupação com o social. No entanto, isso ocorre pelas variadas circunstâncias, ou seja, de maneira relativa, o escritor paulista acabou, ocasionalmente, modificando as distintas injustiças sociais que malogravam as esperanças daquele povo ao qual ele representou através de seus escritos. Basicamente, desejamos atestar como alguns fragmentos selecionados interagem com alguns teóricos selecionados durante a nossa pesquisa.
Devemos salientar que a obra O turista aprendiz foi elaborado entre os anos de 1928 e 1930, em forma de diários de anotações e crônicas de viagens. Em um primeiro momento, o escritor paulista publicou originalmente esses escritos no jornal Diário Nacional, nas mesmas datas. Nessa mesma época, Mário quase concomitantemente desempenhou a função de redator instantâneo sobre esses escritos e os enviou ao próprio jornal. No entanto, a publicação oficial do livro saiu após os textos serem publicados no jornal, em edição organizada por Telê Ancona Lopez, quase cinquenta anos adiante, em 1976.[1] Por outro lado, o texto da obra O turista aprendiz é apresentado estruturalmente como gênero híbrido, muito próximo ao do diário de viagens (documento histórico e literatura), e na época em que foi publicado, foi muito criticado por apresentar caráter fragmentado, assim como frases indecisas e sem subordinação, pouco definidas, e estrutura interrompida,[2] que aqui se permite chamar de irrupções circunstanciais do vaivém dos intervalos da escrita.[3]
A obra O turista aprendiz não possui capítulos formalizados, numeração de sequências ou divisão de textos que possam remeter à ideia de um livro programado.[4] A separação dos episódios e a mudança de localidades são realizadas à medida que Mário vai registrando dia após dia, durante a viagem, ou seja, a sequência temporal utilizada pelo escritor paulista se encarrega de conduzir e direcionar o leitor aos acontecimentos e às viagens. Uma interessante digressão se faz necessária: se levássemos em conta o indexador da obra, teríamos a respectiva classificação ou a projeção de seu gênero: “Brasil: Descrição e viagens”; “Brasil: Folclore”; “Diários: Literatura brasileira”.[5] Por fim, mas não menos importante, a própria capa da obra produzida pela Livraria Duas Cidades, editora de O turista aprendiz, no ano de 1976, estampava o escritor paulista folheando um livro com os seguintes dizeres: “Art Populaire”, o que inexoravelmente assegura uma dimensão mais popular e mais social daquilo que buscamos defender ao longo deste artigo.
Por outro lado, e ainda sobre a materialidade da composição da obra O turista aprendiz, o sumário elaborado por Mário aparenta as normativas de um livro de viagem padrão. As etapas de viagens, aproveitadas como títulos, com as datas e os nomes das cidades, são inseridas como fator de organização e localização para o leitor menos experiente no assunto. O prefácio somente seria escrito dezesseis anos adiante, acompanhado das páginas e intitulado: “49 Prefácio”; “51 São Paulo, 7 de maio de 1927”, e assim respectivamente.[6] A única desvantagem é que o escritor paulista pouco menciona os temas abordados, como títulos ao longo de seu texto. Mesmo assim, a variedade temática abordada em quase todas essas crônicas foi limitada, pois, por mais que Mário buscasse “dar conta” da maior quantidade possível de informações, através de sua voz enunciadora e representativa, não conseguiu abordar cada uma dessas crônicas com o mesmo interesse e dedicação. Possivelmente, ao tomar consciência de que desejava publicar a obra em forma de livro, o escritor paulista tivesse providenciado a elaboração do sumário posteriormente. Portanto, a maior parte dos títulos dessas crônicas que são estabelecidas no sumário contém apenas a data da localidade visitada, impedindo assim, por parte do leitor, melhor compreensão da cidade abordada.
Em última análise, sem antes terminarmos esta discussão, seja o pesquisador iniciante ou profissional, será difícil fugir da tentação de investigar as crônicas de Mário de Andrade no livro O turista aprendiz, pois o autor, mentor de uma criatividade de nação brasileira, mesmo nos expedientes árduos que mantinha na posição de intelectual polígrafo e renomado, soube dar originalidade a seus escritos e registros. Essa constatação do potencial expansivo de sua redação, redigida em forma de crônicas de viagens na obra O turista aprendiz, denota o entusiasmo visceral da paixão pela literatura e pela representação do povo no período em questão.
É possível depreender uma maneira peculiar de canalizar todo repertório cultural que se integra, de forma amistosa e solidária, ao escrever o Brasil pelo todo que significava naquela época. Por esse motivo e viés, Mário de Andrade busca, a partir de sua aproximação com o social, elaborar e fermentar, tanto no documento como na ficção,[7] o reflexo de seus dizeres que perpetuam e sintetizam sua maneira de enxergar e representar esse imenso Brasil. Para plasmar essa substância e sociabilidade intelectual peculiar do escritor paulista, concomitantemente, convergência e divergência de formas artísticas prolíficas, formas que estavamentrando e saindo da polêmica o tempo todo, não hesitamos em experimentar situações densamente genéricas que pudessem salientar a problemática maior encontrada entre sua razão e sua emoção, destacadas como alicerce de seu caráter, quase sempre polêmico. Em suma, podemos verificar um Mário preocupado com as justificativas de uma vanguarda intelectual social que mesclasse autonomia e razão, para lutar pelos projetos de criação e de nação.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas do Diário Nacional Táxi. Estabelecimento de Texto, Introdução e Notas de Telê Ancona Lopez. São Paulo: Duas Cidades,1976.
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1976
ARRIGUCCI, David. Enigma e comentário. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T&A Editor. 2000, LOPEZ, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. Duas Cidades, 1972.
LOPEZ, Telê Porto Ancona. Diário de Bordo. In: ANDRADE, Mário. O turista aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
OLIVEIRA, Cristiano Mello de. Considerações sobre a construção intelectual de Mário de Andrade: O Turista Aprendiz. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. 2011. (Dissertação de Mestrado). Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/99260.
[1] O crítico Davi Arrigucci (1999, p.290) escreve: “Um notável trabalho de crítica textual, feito por Telê Porto Ancona Lopez, permite a quem lê o gradativo descobrimento da gênese dessa história: desde a mais funda origem, quando a situação vivida durante a viagem se incorpora à experiência do escritor, até todo o desdobrar-se do processo de composição, quando ela é visada diversas vezes em recortes diferentes de escrita e representação literária”.
[2] Segundo a crítica Telê Porto Ancona Lopez (1994, p.69) o caráter fragmentário: “A falta de acabamento, o projeto incompleto em determinadas partes que o compõem, o preparo distante no tempo, paradoxal no presentificar o fluxo da criação na pena que correu ou na máquina que disparou, rabiscos e rasuras imediatos lutando pela sintonia entre ideias e execução, esquecido por vezes a gramática, valem como a memória que respalda o texto impresso, esclarecendo soluções mais elaboradas que nele se encontram. E ampliam, em suma, a compreensão da obra de um autor percebendo o desdobramento do ‘scriptor’ um leitor e crítico de Mário de Andrade”.
[3] Sobre o gênero híbrido atingido por Mário de Andrade, sua crítica Telê Ancona (1976, p.31) reforça: “Desde as primeiras declarações do escritor, ficam claras suas intenções quanto ao gênero do livro: um diário, cuja abertura para a narrativa de viagem visava não deixar escapar o peso de uma ótica impressionista, capaz de unir a referencial idade à poeticidade, transformando a experiência vivida (o sentido, o pensado, o biógrafo – o real, enfim), em um texto com finalidade artística que é burilado em termos de distanciamento no arte-fazer. O confessional do diário e o referencial pertencente ao dado de viagem, embora filtrados pela arte, ainda permanecem com elementos do real, dado o hibridismo do gênero mas a seu lado, firme, intromete-se a ficção. Diário de bordo. In: O turista aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
[4] Telê Porto Ancona Lopez (1998, p.63) relata que: “O que diferencia a primeira viagem, à Amazônia, é que ela é programadamente um diário destinado a livro e não um conjunto de textos feitos diretamente para o jornal”. In: O cronista Mário de Andrade. São Paulo. 1992 (Tese de livre docência) – USP, São Paulo.
[5] Informação contida da contracapa da obra O turista aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
[6] Informações contidas no índice da própria obra O turista aprendiz e dele reproduzidas.
[7] Em variados momentos da obra O turista aprendiz, é possível verificar a mescla entre a realidade e ficção. Para fins de exemplificação disso, citamos a elaboração da tribo de Índios Do Mi Sol, em que fica nítida essa mescla (ANDRADE, 1976, p.129): “Mas, por intermédio desta tribo, poderei criar todo um vocabulário de pura fantasia”.