Por Cristiano Mello de Oliveira
Projetar algo implica em planejar estratégias e metas para o futuro. No campo da Literatura formar novos leitores significa formatar novas políticas de ingresso deles às obras literárias. Como todos sabem: uma obra literária somente pode cumprir o seu papel quando esta é completamente desvendada pelo leitor, ou seja, lida e interpretada nas suas minúcias. Quem antes lia o escritor carioca Lima Barreto também pode ler o paulistano João Antônio; este era desconhecido, já aquele virou um grande clássico. Caso permaneça na estante, esta ainda se mantém enigmática e hermética. Assim, tirar o véu da invisibilidade é papel de qualquer formador de leitores, pois é por meio do desconhecido que ele pode conquistar um leitor. E, como é de praxe, todo enredo literário possui uma trama ou uma problemática a ser diagnosticada e seguida. Para que se defina uma leitura mais produtiva, se faz indispensável a criação de uma chave de interpretação da obra, e o professor será o principal agente desse movimento interpretativo. Em outros termos, é operante diagnosticar um ângulo de leitura, o qual possa ser desmembrado ao longo do enredo.
Já ficou provado para muitos professores que o ensino de literatura pela literatura não é sempre viável. Ou seja, uma leitura estruturalista, apenas linguística, gramatical e metaliterária. Ler um romance, um conto, um poema, ou uma crônica implica na capacidade de trabalharmos signos plurissignificativos, os quais serão interpretados por vários tipos de leitores. Surge uma questão: quantos de nós leitores não temos na memória passagens e trechos dos romances que marcaram a nossa forma de pensar a vida? Talvez a melhor resposta seja: leitor e autor são cumplices quando o assunto é memória literária, seja ela recente ou não. Como consequência de uma memória literária, personagens e espaços cenográficos se tornam lendas – permanecendo no imaginário do autor e leitor durante anos. Pensamos, por exemplo, na condição do migrante em busca de condições melhores de vida: na obra Vidas Secas (2002), de Graciliano Ramos; nos moleques de rua que praticam pequenos furtos na cidade de Ilhéus na Bahia, em Capitães de Areia (2008), de Jorge Amado; na forte temática econômica-social narrada pela grande seca nordestina que ocorrera no ano de 1915, em O Quinze (2005), de Raquel de Queiroz, dentre outros.
Em linhas gerais, os estereótipos de enredo criados acima, reforçam ainda mais a nossa lembrança literária com outros livros. Algumas temáticas são insistentes e desafiam escritores a repetirem fórmulas trabalhadas por outros escritores. Devemos lembrar que no movimento artístico literário uma tendência acompanha a outra, inovando e recriando novos formatos de transformar o objeto artístico. É de praxe sabermos que a estratégia da paródia é conhecida e reconhecida quando o autor se encanta com a genialidade do outro autor. Quem nunca leu um romance, identificando características comuns a outros? Isso não é algo de se estranhar. Podemos acreditar que o gênio da criação compra generosamente a inveja sentida por este; sendo que o invejado apenas cede a sua matriz literária. Por exemplo, se lemos o romance Doidinho (2006), de José Lins do Rego, pela temática do internato colegial de meninos, certamente, vamos ligá-lo ao enredo da obra O Ateneu (2004), de Raul Pompeia. Em suma, a familiaridade literária ou a biblioteca particular do autor e do leitor são ativadas, objetivando reconhecer outras formas de associações durante o ato da leitura literária.
Saindo um pouco dessa atmosfera, durante as reuniões pedagógicas exercidas em muitas escolas pelo Brasil afora, é comum o debate sobre a importância da leitura do texto fictício como valor intrínseco ao aprendizado da linguagem. Diferente do trabalho já exacerbado com o texto utilitário (de caráter informativo e pragmático), o texto fictício encoraja o leitor a deflagrar uma série de prerrogativas essenciais linguísticas, pois ele exige uma melhor memória durante o ato da leitura. Se nas primeiras páginas da leitura de um romance temos a breve descrição de uma paisagem urbana, sem antes o narrador citar o nome da cidade, devemos ativar a nossa memória quando esta descrição aparece de forma mais detalhada no segundo capítulo. Embora a atividade de leitura seja um ato solitário, ler literatura não pode ser considerado uma atitude passiva. Como muitos sabem, o texto literário exige do leitor uma espécie de formação de sentido durante o desenrolar da narrativa, construindo idas e vindas, necessitando o preciso encadeamento das ações e do entendimento da trama. Por esse viés, muito se tem questionado a respeito de como podemos angariar leitores, ou ao menos como podemos atraí-los ao encontro do sublime o qual o fenômeno literário se incorpora.
Reticências à parte, a palavra leitor é sinônima da expressão apreciador literário. Ou seja, alguém que aprecie ler boas obras, assimilando o sentido da vida por meio das narrativas. Na sequência, caso desejássemos, poderíamos enumerar várias expressões similares. Desse modo, ler implica também na capacidade de aprimorar o nosso sentido de mundo. De termos noção de espaço onde acontece a trama e se desenvolve os acontecimentos representados no enredo. Por mais que a ambientação do romance seja neutra e opaca, devemos saber que isto simboliza algo a ser interpretado e resolvido. Se fôssemos falar de representação teríamos que explicar também qual é a força da ficção ligada ao mundo real. O sentido não é arrolarmos uma longa lista, mas fornecer meios ilustrativos que possam subsidiar o trabalho docente em sala de aula. Por exemplo, quando lemos Cinzas do Norte (2008), do escritor Milton Hatoum, conseguimos compreender como é a vida no espaço geográfico do interior da Amazônia. Mas antes necessitamos reativar a nossa memória acerca da condição local e vida dos moradores dessa região, ativando como é a cultural, a culinária, o folclore e o jeito de falar das pessoas das pessoas de Manaus. Boa parte dos romances de Hatoum exige um leitor medianamente informado acerca do regionalismo local da cidade de Manaus e dos seus arredores.
Em síntese, a relevância desse exercício integrador pode ser destacada: primeiro, pelo significado de integração do grupo inteiro de professores; segundo, pelo artefato final das obras literárias e os novos formatos de aprendizagem que formarão o acervo escolar, cuja proposta se encontrará mais tranquila se ela já possui uma biblioteca; terceiro, por seu compromisso humano e cívico ao oportunizar e privilegiar nossos leitores futuros. Além disso, cabe ao professor explorar de forma amistosa, estabelecendo grupos de literatura que supostamente terão o melhor benefício de uma leitura: o prazer pelo texto literário e o conhecimento do fenômeno. Outros benefícios virão no decorrer das próximas séries, ou mesmo na entrada do estudante na Universidade. Nessa fase, ele terá maior base de leitura para enfrentar a carreira escolhida, aproveitando com mais vantagem àqueles cursos no qual a leitura seja mais bem utilizada, como é o caso das licenciaturas. Portanto, é por meio deste breve projeto, que o leitor pode ao menos satisfazer algumas temáticas de leitura, situação que por ora pode ser um tanto desafiadora e ao mesmo tempo interessante.
REFERÊNCIAS
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
POMPEIA, Raul. O Ateneu. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
QUEIROZ, Raquel. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2002.