A CONQUISTA DA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA

 

 

Por Cristiano Mello de Oliveira

A palavra conquista implica uma luta pelo sucesso, correto? Será que o substantivo historiografia já conseguiu se prevalecer diante do adjetivo literário? Ou seja, será que essa qualidade está devidamente posicionada? Para sabermos isso, ou ao menos explorarmos essa questão evolutiva, é interessante dialogarmos com alguns teóricos e conceituadores sobre como a história da literatura tem se promovi do ao longo de algumas décadas. Se, de fato, houve uma conquista, é necessário que saibamos como ela é condicionada aos fatores da crítica literária.

Se houve uma derrota, também devemos tomar conhecimento ou, ao menos, inverter a lógica conceitual. Sendo assim, ao movermos o nosso raciocínio em torno desse tema, é importante que formulemos um debate profícuo e que possamos atestar como tal debate se desdobrou ao longo de alguns anos. A fim de delimitarmos os horizontes especulativos da nossa expectativa conceitual, é indispensável conhecermos o significado da palavra historiografia ou, pelo menos, uma expressão similar; assim, quais são seus reais objetivos e funcionalidades?

A História da Literatura, por seu turno, a partir de uma pretensa objetividade a ser alcançada, organizava o acervo literário segundo conceitos como os de período e grupos, desconsiderando a natureza estética das obras literárias, ficando restrita ao que poderíamos chamar de uma estética da produção. (BAUMGARTEN, 2014, p. 9).

Partindo para uma análise menos conceitual, e se fôssemos optar pela desestruturação literal da palavra, poderíamos facilmente dividi-la em duas: história e grafia. Para facilitar o entendimento, certamente teríamos, portanto, uma escrita da história, que ficou muito bem conhecida como a forma de se fazer a história oficial, ou seja, uma base documental. Dentro desse raciocínio, podemos ilustrar como “divisor de águas” a Escola de Annales, estabelecida na França, nos anos de 1928 e 1929, e formulada por dois pensadores importantes: Lucien Febvre e Marc Bloch. Se tivéssemos a capacidade de explorar apenas sob a ótica evolutiva, teríamos outros fatores importantes a serem levados em conta, como a sequência e a cronologia. Conforme observamos, o conceito da historiografia se refere, com maior frequência, a uma tradição literária de explorar a literatura pelo viés do estudo sincrônico, ou seja, algo relacionado ao seu avanço e também retrocesso. Antes de tudo, devemos salientar a importância de que alguns movimentos literários também possuam engajamento pelo fator inerente à dimensão estética, esta ligada aos movimentos artísticos de outras manifestações.

Se as obras se articulam como formas estilísticas e geracionais de uma superar ou solapar a outra, o certo é que cabe ao professor saber trabalhar esses processos de ruptura e continuidade, conectando os motivos e as razões estéticas e históricas. Já tivemos a chance de comentar, no primeiro capítulo, sobre a formação docente, cujo teor deve ser cada vez mais investigativo e menos assertivo. Um exemplo é a rapsódia Macunaíma, de Mário de Andrade, que não apenas rompeu com a escola estética parnasiana do fim do século XIX, ligada aos movimentos estéticos do Arcadismo 1768-1836 Romantismo 1836-1881 Realismo 1881-1922 do escrever pomposo e floreado, mas foi considerado um romance fora dos padrões comuns da literatura brasileira.

Como para toda regra existe exceção, desse modo, existe uma van tagem trabalhada nessa tradição repetitiva da valorização da historio grafia, pois, ao explicar com certa propriedade o movimento contínuo das escolas literárias, o aluno também pode compreender como isso é exposto nas variações de leituras nas obras de diferentes períodos.

Para Antonio Candido, “as obras se articulam no tempo, de modo a se poder discernir uma certa determinação na maneira por que são produzidas e incorporadas ao patrimônio de uma civilização” (CANDIDO, 2000, p. 29). Ao falar da importância da articulação literária historicista, a que incorpora análise junto ao contexto histórico das obras, Candido compreende que o “fenômeno literário” exige tirar proveito do contexto histórico.

Uma das grandes limitações de muitos estudos literários é negar que a literatura possui uma vertente do social e do panorama de vida do autor. Por mais que Candido formule uma generalização filosófica sobre o tema, o curioso é que todo escritor almeja uma dimensão criativa e histórica para a sua obra. Ao produzir um romance, o romancista fica condicionado ao anseio histórico vigente, sendo, a todo o mo mento, influenciado pelos acontecimentos e pelos fatos. Obviamente, sua experiência de vida e o seu contexto de origem serão aproveitados em benefício da produção da obra.

Um exemplo nítido foi o que ocorreu na obra O que é isso, companheiro? (1984), do autor Fernando Gabeira, classificada pela crítica literária como romance-reportagem. Buscando resgatar os acontecimentos da luta armada na década de 1970, Gabeira, trabalhando como jornalista no antigo Jornal do Brasil (sede no Rio de Janeiro), acaba aproveitando acontecimentos políticos de época para compor o recheio dramático do romance. Desse modo, o que queremos dizer é que ele possui uma matriz ideológica pertinente à sua formação, seja esta relacionada à sua bagagem histórica ou às suas crenças e opiniões. Dessa forma, é realmente problemático dizermos que um escritor é neutro em seu discurso, pois toda ação intelectual impõe uma condição sócio-histórica.

Se a dimensão criativa, como vimos, persegue muitos escritores, o certo é que a historiografia também é amarrada ao tradicionalismo de muitos livros didáticos. Se resolvêssemos realizar uma rápida consulta a eles, encontraríamos, fartamente, muitas referências escolares que insistem em uma abordagem da literatura pela dimensão histórica. Não observamos isso apenas como um problema, pois o maior entrave é quando a relação estética de outros movimentos artísticos (pintura, artes em geral etc.) se en contram apartados da obra. Certamente, se resolvêssemos problematizar a tradição historiográfica, a qual a literatura quase sempre se encontra inserida, observaríamos que, ainda hoje, ela é uma marca recorrente também nos estudos literários. Longe de ser uma tarefa dispensável, o texto literário acaba seguindo rótulos classificativos, julgando gostos e aptidões comuns. O autor William Cereja se posiciona polemicamente a esse respeito: “um dos problemas da historiografia clássica é a pretensão de abarcar todos os textos e autores considerados importantes e quase sempre obedecendo a critérios de cânone discutíveis e mutáveis” (CEREJA, 2009, p. 142).

Em síntese, por mais que tenham consciência ou não, o problemático é que o embasamento crítico acaba se ausentando, devido à carga horária puxada de muitos professores e a possíveis lacunas na formação acadêmica, dentre outros longos fatores. Ainda somos reféns de uma didática tradicional ocupada em apenas transmitir o conteúdo, sem ao menos poder ter a chance de ajustá-los a nosso favor. Na busca de um maior conhecimento e de uma maior bagagem cultural com as outras manifestações artísticas correspondentes (pintura, artes gerais, cinema, música etc.), é possível relacionarmos semelhanças e diferenças estéticas produzidas ao longo das décadas.

REFERÊNCIAS

BAUMGARTEN, C. A historiografia literária brasileira: experiências contemporâneas. Revista Todas as Letras X. v. 16, n. 2, p. 27-38, nov. 2014. Disponível em: http://editorarevistas. mackenzie.br/index.php/tl/article/view/7363/5034. Acesso em: 8 maio 2020.

CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997.

CEREJA, W. R. Ensino de literatura: uma proposta dialógica para o trabalho com literatura. São Paulo: Saraiva, 2009.

Uma resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Veja outros Artigos!

A LITERATURA NO ENSINO MÉDIO

  Por Cristiano Mello de Oliveira Para iniciarmos esta seção, fazemos o seguinte questionamento: você (leitor e futuro professor), nas conversas informais na sala dos

Leia mais »
plugins premium WordPress
×