Por Cristiano Mello de Oliveira
O conceito de letramento, à primeira vista, parece dispensar qualquer comentário. Ao que tudo indica, ter letramento ou intuir suas causas e seus motivos é algo óbvio ao suposto sentido da palavra. Já listar as suas contribuições pode ser considerado árduo, devido às suas reais circunstâncias históricas. Quando se diz que um cidadão é letrado, supõe-se que ele saiba bem a Língua Portuguesa ou se comunique muito bem. Mas, como toda exceção tem as suas regras impostas, o conceito de letramento foge das designações estimuladas pelo senso comum. Caso saíssemos das generalizações impostas e ousássemos por uma simples curiosidade intelectual ao buscar o significado do vocábulo letramento nos livros de linguística mais conhecidos da pesquisadora Magda Soares, encontraríamos uma série de determinações conceituais indispensáveis ao tratamento do termo.
De acordo com a estudiosa: “letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler ou escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita” (SOARES, 2009, p. 8). Por mais que desejemos parafrasear todo o percurso histórico do conceito de letramento, situação contextual muito bem feita pela autora, faz-se necessário indagarmos como o letramento literário (que a autora pouco menciona) nos ajuda a pensar em melhores condições de aplicabilidade didática com o texto literário. Você pode ter calculado que adquirir letramento literário significa ter a capacidade de utilizar a língua falada e escrita em diversas funções sociais. Todavia, essa assertiva não esclarece muito bem como podemos fazer uso dessa estratégia – situação que merece um melhor tratamento.
Caso aceitássemos tal consideração, o conceito de letramento literário seria basicamente a sujeição do aluno aos diversos tipos de leituras de textos fictícios e o constante aperfeiçoamento da leitura na prática diária. “A literatura transforma e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana” (EAGLETON, 2001, p. 2). Conforme discutíamos na seção anterior, a utilização do letramento literário por parte do professor de Letras comporta o verdadeiro interesse do trabalho com os diversos gêneros textuais – novela, conto, poema, poesia, romance, entre outros. Concernente aos diversos gêneros trabalhados em sala de aula pelo docente, o aluno passa a ter maior domínio do arcabouço literário. Em suma, ampliando as potencialidades da linguagem existente, o professor pode incentivar algumas estratégias de leitura, cujo objetivo é capacitar o aluno em diversas situações do cotidiano.
Faz-se indispensável relatarmos que a questão do letramento literário também pode influenciar leitores e escritores de outras especialidades profissionais. É curioso afirmarmos que muitos profissionais ligados às ciências da computação ou estudiosos da inteligência artificial são pessoas aficionadas pela literatura de ficção científica. Devido à retórica verbal e profética, o subgênero foi responsável por influenciar uma série de estudiosos e pesquisadores – em especial aqueles que desejavam persuadir os seus leitores por meio da série de recursos tecnológicos alcançados. Dessa forma, autores como George Orwell, Júlio Verne, H. G. Wells, Isaac Asimov, entre outros, reformularam a forma de pensar de alguns outros profissionais. Não por acaso, o formato enunciativo textual, a seleção vocabular, a estrutura frasal, as estratégias argumentativas ou até mesmo a estilística verbal do autor são características das quais o estudioso pode fazer bom uso. A título de ilustração, Vinte mil léguas submarinas (1870), do escritor Júlio Verne, romance que narra viagens ao redor do mundo por meio de um submarino, fez muito sucesso na época. No tocante aos gêneros de viagens ou ficção científica, muitos críticos afirmam que a forma de narrar os locais visitados elaborada pelo autor francês ajudou outros viajantes e estudiosos na formulação de técnicas de escrita.
Se chamássemos você para um debate, seria possível perceber que uma das atividades humanas de maior interesse em quase todos os níveis de educação é o processo de aquisição do conhecimento por meio da leitura. Em quase todas as disciplinas ligadas ao contexto escolar – Língua Portuguesa, Literatura, Filosofia, Geografia, Ciências, História –, o letramento literário se faz indispensável para a formação de nossos alunos. Basicamente tudo passa pela construção do registro da escrita – seja na sua forma de dar conta do conhecimento humano já trabalhado, seja pelo avanço do conhecimento inserido. A construção e o aprimoramento da escrita via letramento nada mais é que a forma social pela qual estabelecemos o seu uso em diversos meios escolares. Nesse sentido, atividades de leitura que conseguem mesclar o letramento literário com o aprendizado do uso social da escrita sempre são incentivadas: rodas de leitura, oficinas de leitura, narrações de histórias, cafés literários, palestras com autores, intervenções didáticas com escritores, entre outras formas. Portanto, não faltarão desculpas para o aprimoramento da leitura via atividades, as quais podem ser previamente formuladas pela equipe pedagógica e por parte dos professores envolvidos.
Você já deve ter imaginado o quanto a literatura está presente no dia a dia de cada cidadão, não é mesmo? Explicar os “porquês” da sua aparição tão frequente não é mais uma forma de justificar sua presença, mas, sim, a sua própria importância e pertinência. “O conceito da linguagem diária não é uniforme: incluem largas variedades, como a linguagem coloquial, a linguagem do comércio, a linguagem oficial, a linguagem da religião, o calão dos estudantes” (WELLEK; WARREN, 2001, p. 25). Basta uma simples caminhada pelas ruas das grandes cidades do Brasil para nos depararmos com anúncios e letreiros de diversas modalidades. Embora nem sempre o texto utilitário (fixado em vitrines e aderido em propagandas e cartazes) seja usado de forma estética e poética, as figuras de linguagem – entonando uma forma mais descontraída de comunicação – quase sempre aparecem nos grandes anúncios. Ao que tudo indica, isso resume que o texto escrito para fins objetivos, não raras vezes, também é usado de forma poética, buscando cativar o leitor menos assíduo a propagandas objetivas e pragmáticas.
Não devemos esquecer que o ensino de literatura por meio do letramento literário é capaz de fazer o leitor raciocinar sobre a língua de outra maneira. Desse modo, podemos conjecturar que o sujeito leitor que usa e abusa do fenômeno literário seja supostamente crítico e capaz de formular enunciados comunicativos e estratégicos ligados ao contexto social e político. “O bom leitor, portanto, é aquele que agencia com os textos os sentidos do mundo, compreendendo que a leitura é um concerto de muitas vozes e nunca um monólogo” (COSSON, 2014, p. 20). Apreciar e utilizar a literatura como forma de letramento significa expandir os meios expressivos que a linguagem é capaz de representar. O aluno, leitor contumaz, não se conforma em observar o mundo fragmentado, mudo e monossilábico. Ele passa a ganhar com o conhecimento empírico ofertado pela literatura – a experiência das personagens e seus hábitos e costumes passam a ser compartilhados no ato da leitura. Quando lemos, por exemplo, o romance Lucíola, do cearense José de Alencar, somos levados a compreender as razões da proteção feminina em relação ao bom casamento. Hábitos e costumes da sociedade carioca do século XIX são revelados – não à toa, muitos historiadores consideram a literatura como forma de documento social de uma determinada época.
É de bom grado que o professor evite a prática de letramento literário estimulando o estudante à retenção de informações memorativas em relação à obra analisada. A busca pelo texto literário perfeito (no tocante aos requisitos gramaticais) também não condiciona o aluno ao bom letramento. A autora Ângela Kleiman (2004, p. 21) defende a ideia de que o texto literário pode fugir do universo da escrita, que é quase sempre rotulado, estabelecido e institucionalizado. A título de exemplo, para ilustrar o pensamento da autora, remetemos ao diário Quarto de despejo, da escritora Carolina de Jesus (autora negra e favelada), que pode ser utilizado para compreender a literatura diante de diferentes contextos. Nesse livro, seminal para a época e o contexto de Carolina, ela expõe a vida árdua e difícil em uma comunidade periférica de São Paulo. Não por acaso, o texto traz muita bagagem oral (relato em primeira pessoa) para ser trabalhado pelo professor – creditando a potência que a literatura pode ter como fator de letramento literário diante de contextos meramente opostos ou não ao leitor. Diante do exposto, é possível observarmos que de nada adianta trabalhar a obra como espelho de uma receita tradicional aos moldes gramaticais perfeitos, pois é necessário fazer com que o estudante reflita como essa obra literária iluminará o seu contexto social.
Calculamos que formar leitores críticos e formadores de opinião seja a maior tarefa do professor que se dispõe a trabalhar com o letramento literário. Assim, a função de escolher obras literárias para os alunos é, em todas as etapas da educação, uma das tarefas mais difíceis de serem realizadas por um docente em sua atividade pedagógica. Nesse sentido, nós, professores, não podemos nos furtar ao rico debate em torno da devida escolha de metodologia de letramento literário junto à equipe pedagógica, caso seja necessário. Já na sala de aula, é preciso cautela para não simplificar as leituras, julgando uma única interpretação, caindo em preferências ideológicas pessoais ou leituras simplórias. Pensando assim, o significado de letramento pode ser ampliado pelo fortalecimento das escolhas de leitura realizadas pelo professor. Por esse motivo, cabe ao professor de literatura um engajamento na seleção dos textos e no encaminhamento das atividades propostas. Portanto, é no saber argumentar diante de um conflito estabelecido durante o enredo de um romance que, supostamente, está o bem mais precioso na formação de bons leitores.
Obviamente que a escola pode ser capaz de recomendar bons livros e autores – os quais tenham sido chancelados pela crítica ou não. Abrindo parênteses, para fins de esclarecimento, a crítica de uma obra ou um conjunto de autores geralmente é composta pelas academias de letras espalhadas pelo Brasil, pelas resenhas dos críticos literários renomados, pelos cadernos culturais de grandes veículos da imprensa, pela chancela dos professores universitários para citar alguns exemplos. Sabemos que os diversos tipos de leitores adquirem formação com a leitura de diferentes obras literárias com a finalidade expressa de cumprir os objetivos de uma ementa. Entretanto, o bom leitor sempre busca ter curiosidade para saber o “terreno em que está pisando” – a priori, conhece o autor; depois, a obra. Retirado do organismo escolar, é importante que o aspirante a leitor contumaz tenha autonomia para diagnosticar o que lhe interessa.
Não chegamos a realizar uma pesquisa que desse conta de algumas escolas que fornecem ferramentas para efetivar o papel de leitor que existe em cada aluno, porém, provavelmente, o letramento literário passa a ocorrer quando ele termina os estudos. Conforme nos aponta o autor Ítalo Calvino: “a escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola” (CALVINO, 2002, p. 13). Dependendo do grau e do objetivo didático almejado pelo professor, podemos dizer que é possível sim que o estudante possa aprender o uso dos tempos verbais ou algumas noções gramaticais ao ler uma narrativa de um determinado autor. Obviamente, devemos ter o pleno aceite de que o texto não tem a função de esmerar um estilo metalinguístico, ou seja, ele não deve ser selecionado apenas por este motivo. No entanto, além de aprender os tempos verbais, o estudante pode adquirir toda uma noção do conteúdo gramatical (sintaxe, morfologia, semântica etc), que pode ser combinado com outros tópicos da Língua Portuguesa.
Para fins de ilustração, caso o docente esteja preparado para o uso estratégico da leitura de alguns romances históricos, ele pode selecionar trechos que contenham diversos pretéritos perfeitos ou imperfeitos. Que tal ler fragmentos da obra histórica As minas de prata, de José de Alencar, e estimular o leitor na identificação desse conteúdo? Além disso, o docente de Letras pode propor diversas estratégias para o estudo de outras funções dos tempos verbais, como fazer os alunos reescreverem partes de um romance com suas palavras. Ao selecionar partes que possam subsidiar o ensino da gramática, é óbvio que o letramento gramatical será ampliado e diagnosticado. Você deve ao menos imaginar que uma excelente sugestão para quem busca assimilar o letramento literário de forma eficiente e sedimentada é a escolha didática de leitura dos clássicos, conforme defende o autor Rildo Cosson: “ao selecionar um texto, o professor não deve desprezar o cânone, pois é nele que encontrará a herança cultural de sua comunidade” (COSSON, 2014, p. 44).
Nessa manobra, podemos colocar em jogo a escolha de critérios para definir como se dará o processo de leitura e, consequentemente, de aprendizagem e avaliação. Embora possa haver algumas contestações em relação aos conteúdos programáticos pelos livros didáticos de Língua Portuguesa, é importante abordar o processo de leitura dos livros considerados imortais. Diante do que já aprendemos, sabemos que quem se dispõe a ler um clássico o faz porque sabe da importância de fundamentar os principais gostos literários. Compreender os autores que formularam as raízes da literatura greco-romana, como Aristóteles, Plutarco, Platão, Horácio, Sófocles, Aristófanes, Ésquilo, Eurípides, entre outros, significa diagnosticar como funciona a literatura contemporânea. É pela apropriação de outras obras, em especial das clássicas, que a literatura consegue formular o rol de textualidades e reformulações. De acordo com o autor Ítalo Calvino, “toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura” (CALVINO, 2002, p. 11).
REFERÊNCIAS
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2015.
CALVINO, Í. Por que ler os clássicos. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: T&A Editores, 2000.
CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
COMPAGNON, A. Literatura para quê? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009.
COSSON, R. Letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.
EAGLETON, T. Teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
JOUVE, V. A leitura. São Paulo: Unesp, 2002.
JOUVE, V. Por que estudar literatura? São Paulo: Parábola, 2012.
SAMOYAULT, T. A intertextualidade. São Paulo: Hucitec, 2008.
SILVA, K. V.; SILVA, M. H. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009.
SOARES, M. Um tema: em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
TODOROV, T. A literatura em perigo. São Paulo: Difel, 2009.
WELLEK, R.; WARREN, A. Teoria da literatura. Lisboa: Biblioteca Universitária, 2001.